Há uma sede de sangue dos jornais, rádios e principalmente televisões no caso do mártir Charrua. Sangue de governantes, claro.
Um professor do secundário terá sido de facto professor há cerca de vinte anos, antes de ser destacado para a DREN. A DREN é uma espécie de dreno para os cansados, os aborrecidos do ensino. Só que não são drenados, são destacados. Uma vez destacados, tornam-se destacados dirigentes da administração pública regional.
E acabam por criar rotinas. Uma dessas rotinas será, imagino, falar com os colegas, comentar, juntar mais uma acha à fogueira do anedotário nacional. Sabe-se que é assim. Mesmo em reuniões, se for preciso, para desanuviar. Às vezes, a malta excede-se, mas é certo que se sabe que se está entre colegas do mesmo ramo. E uma piada é uma piada.
Mas uma piada nunca é uma piada quando é dita em frente a alguém que anseia por uma oportunidade de se mostrar zelosa da urbanidade e do respeitinho. Principalmente do respeitinho a alguém lá em cima. Aí está, então, uma magnífica chance de fazer o nosso nome notado: registar um ataque ao meu superior, não deixar morrer a coisa e fazer algum estardalhaço, de preferência através de um processo disciplinar, que tem outra cara que não a minha, que é a que vem prevista na lei. Eu não me queimo, o decreto-lei é que me obriga. E, depois disto, pode ser que alguém lá em cima se lembre de mim como fiel zelador (ou zeladora, como parece que é o caso) de um ambiente são, leal, asséptico, respeitoso nos organismos descentralizados do Estado. Sim, porque alguém se há-de lembrar, apesar de todo o forrobodó nos media que nunca desejei (oh, que ingénua fui), alguém lá nas secretarias de Estado há-de lembrar-se da minha fidelidade e do meu zelo. Pode ser que sim.
Para mim, este episódio resume-se a isto. Uma espécie de graxa. Uma animosidadezinha pessoal que possivelmente já existia. Uma directora qualquer que achou que podia ganhar com a delação. O poderzinho, o poder pequenino, que neste caso se prova que, por mais pequenino que seja, é demasiado quando cai no colo dos sôfregos.
Era com essas possibilidades infinitas que se oferecem aos medíocres que eu ontem brincava quando falei em saneamentos. Nada que tenha a ver com perigos maiores que, hoje, inundaram os grandes cérebros das redacções de televisões e rádios. "O direito à liberdade de expressão em perigo"...
A arrogância é demonizada. Mas justificava-se plenamente aqui. O caso vai ao Parlamento? Desgraçada oposição, raios, é aflitivo o desespero! Os jornalistas caem em cima do Sócrates? Única resposta possível: perguntem à senhora responsável o que é que lhe passou pela cabeça. Mais uma oportunidade para chatear a Ministra da Educação? Eu digo, a única coisa que vale a pena investigar aqui é o ambiente de cortar à faca nas direcções-regionais e as verdadeiras motivações de quem lá anda a trepar e a tentar trepar, desde o antigo professor desiludido e desbocado ao/à responsável ambiciosa, espalhafatosa, desastrada, estúpida.
Assim à primeira vista, perigo, perigo, só o da vontade de atacar os do costume, que perpetua a preguiça mental e a vontade de teorizar conspirações e totalitarismos. O português, felizmente, só se empolga com a palavra "totalitário" porque é parecida com "totalista", e isso já tem a ver com o Euromilhões. O povo é sereno como o caraças (que é sereníssimo), e não é nada burro.
Sendo que os partidos que começam logo a berrar, ao caírem nestas esparrelas com uma facilidade assustadora, estatelam-se invariavelmente ao comprido dois ou três dias depois, e ficam sujos, afónicos e embaraçados. Como burros. "Sujo, roído de piolhos, e os porcos, quando olham para mim, vomitam". Lautréamont, "Os Cantos de Maldoror". Maldoror são os que uivam pela ida de Primeiro-Ministro, ministras, secretários de Estado, secretários de secretária, contínuos, ao Parlamento, para "dar explicações sobre este gravíssimo caso". Os porcos somos nós.
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