Um documentário hoje na RTP-N, não apanhei o início, não apanhei o título.
Várias gerações de americanos que foram chamados à guerra. À II Guerra Mundial, ao Vietname, à I Guerra do Golfo, à II Guerra do Golfo.
O tema era "a facilidade, a dificuldade, a memória, a amnésia de matar" e "onde param os mortos na sua cabeça?" (digo eu).
Houve, em todos os depoimentos, o óbvio e incontestável "era o inimigo que estava à minha frente, era ele ou eu, matar ou morrer".
Houve relatos de confissões, não ao capelão da companhia, mas ao padre da terra a que se regressa destrambelhado e pós-traumatizado, que responde "cumpriste o teu dever para com a nação". Grande pós-vida lhes preparam estes burocratas da salvação.
O velho, muito velho, que na II Guerra Mundial matou um japonês na sua própria terra. Estava esfomeado, o morto tinha arroz, ele comeu todo o arroz logo ali, ao lado dele. No fim, vasculhou-lhe a carteira, encontrou uma fotografia recente (o japonês era um adolescente), guardou-a como nunca mais guardou fotografias de ninguém, na casa em que vivia já sozinho na altura da entrevista tudo estava amarelecido. Mostrou a imagem do rapaz, impecável, e confessou que passou a memória do momento para um lado esquecido do cérebro. Mas foi inesquecível, contradiz-se. O momento em que se mata. "The rush"... Diz que passou décadas sem comer arroz.
O veterano do Vietname. Não se percebe se parecia mais velho quando por lá passou, a julgar pelas fotos, ou se parece um miúdo agora que, da vida anterior, só lhe resta o corpo. Porque a alma, a energia, a família e toda a vida que tinha antes da "viagem" desapareceram. Um despojo que se vai abaixo 3 ou 4 vezes durante a entrevista, tremendamente inteligente mas irremediavelmente destroçado. O veterano que diz que o primeiro episódio em que reviveu "pós-traumaticamente" a guerra foi aquele em que estava sentado fora da cabana para a qual teve de ir viver porque não conseguia coabitar com a mulher e a filha, de tão lixado que estava, de pé sobre a margem do rio a decidir se se matava nesse dia ou não. Uma mulher afogou-se nessa tarde e ele assistiu, e quando apareceu o helicóptero de salvamento ele enlouqueceu, estava outra vez lá, na guerra, onde havia sempre helicópteros lá, por cima. Este disse que ficou viciado quando matou o primeiro coelho. "The rush"... Daí para a frente, quis caça cada vez mais grossa, e adorava matar veados. "The deer hunter", "O Caçador", do Michael Cimino. Foi parar ao Vietname. "Era eu ou eles, mas não me peçam para descrever"...
Entram psicólogos, psiquiatras, oficiais do Exército. Um oficial sai-se com uma tirada de antologia, referindo-se ao Vietname: "Fica mais fácil o trabalho dos soldados (matar o inimigo) sem problemas morais se se fizer passar primeiro a imagem do inimigo como infra-humano (vietcongs de baixa estatura, facies atrasadote, etc...) e com comportamentos guerreiros bárbaros (desmembramento de cadáveres inimigos, etc...). Ok. Costumava adorar coelhos, mas agora descobri estes comunas degenerados.
Iraque, 2006: entrevistam um soldado que não parece ter idade para votar ou praticar condução defensiva, mas deixou mulher e filha nos U.S. of A. Já matou uma porrada de gajos e parece bastante confortável com isso. É um miúdo, mata à distância com alguém por perto a filmar a façanha. Dão um primeiro tiro num tipo, filmam-no a estrebuchar durante um minuto ou dois, depois mais um tiro e acabou, uma data de "hurrahs" para a câmara. Ninguém vai lá buscar arroz ou uma fotografia.
Há de tudo nos exércitos, já se sabe. Só não parece haver solução para este Vietname ao quadrado que vai trazer muita chatice por muito tempo para muita gente, e mais ainda.
2 comentários:
Nos portugueses temos uma geracao marcada pelo mesmo sentimento. E nem sabiamos o que era o stress pos-traumatico. E sempre a vergonha de falar numa guerra absurda. Mas estava la' tudo, as aldeias queimadas a lancha chamas, o napalm, o inimigo bestializado...
e uma guerra sem solucao que teve continuacao numa guerra civil. "Mimetismos"!
Ah, a guerra colonial, esse grande tabu português!
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