segunda-feira, outubro 15, 2007

A dura vida de um astronauta muçulmano em órbita

Como é que um muçulmano se volta para Meca no espaço?
15.10.2007, Teresa Firmino
O primeiro astronauta da Malásia já dá voltas à Terra; antes as autoridades islâmicas do seu país fizeram uma reflexão inédita: definir os preceitos que um crente deve seguir no espaço
No espaço, como é que um muçulmano sabe em que direcção fica Meca, a cidade mais sagrada do islão, para poder rezar voltado para lá? E tem de cumprir à risca o preceito de orar cinco vezes por dia, começando antes do nascer Sol e acabando depois de se pôr? Se assim for, tem de rezar 80 vezes, porque, em órbita, o Sol nasce e põe-se a cada 90 minutos. Ou, ainda, como é que um crente islâmico se mantém em pé e depois se curva e deita no chão enquanto reza, se lá em cima tudo flutua?
Tantas interrogações foram desencadeadas pela viagem de Sheikh Muszaphar Shukor, o primeiro astronauta que a Malásia pôs a dar voltas e mais voltas à Terra, na quarta-feira. Partiu numa nave russa Soiuz, onde seguiam ainda a norte-americana Peggy Whitson e o ucraniano Iuri Malenchenko (que, em 2003, casou por videoconferência, ele no espaço, a noiva norte-americana no Texas).
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Mas foi com a viagem de Shukor que surgiu uma reflexão formal sobre a problemática de como um muçulmano deve viver no espaço se quiser seguir os preceitos quotidianos da sua religião.
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O resultado está num pequeno documento, o Guia para a Realização do Ibadah na Estação Espacial Internacional, ao qual o Conselho Nacional da Fatwa da Malásia (uma fatwa é um édito religioso) deu aval.
Assim, o guia estabelece a maneira como, no espaço, os muçulmanos devem lavar ritualmente o rosto, as mãos, os braços ou os pés antes da oração; como devem limpar-se de todas as impurezas depois de urinar e defecar; quantas vezes por dia devem cumprir o ritual da oração, para onde devem estar voltados quando rezam e em que posições corporais; como jejuar; e como cuidar dos mortos.
Para não haver confusões, o documento esclarece que o "espaço" é o que está para lá da atmosfera terrestre, não vá pensar-se que a uma simples viagem de avião poderão aplicar-se estas orientações.
Começando pela limpeza, há logo vários problemas. Não é possível tomar um duche ou um banho espacial, porque as gotas de água teimariam em flutuar por todo o lado, além de que os astronautas ainda correriam o risco de sufocar com as gotículas no ar. Como se isto não bastasse, a água é um bem escasso, ou então a urina dos astronautas não seria reciclada e reaproveitada na estação espacial. Tomar banho é pois um conceito que, no espaço, é pouco palpável. Resume-se a toalhetes.
Perante isto, o guia recomenda que se faça como o islão já indica nas situações em que não existe água disponível, como no deserto. Pode usar-se areia ou poeira. "Podem pôr-se ambas as mãos na parede ou num espelho da ISS (mesmo sem pó)", lê-se. Já na limpeza das zonas corporais após a ida à casa de banho, entre as várias sugestões, o guia diz que podem usar-se os toalhetes, "não menos de três", disponíveis na ISS.
Siga-se um fuso horário
Quanto ao número de orações, a solução é prática: "As cinco orações diárias são definidas num período de 24 horas (igual a um dia na Terra), seguindo o fuso horário do local de onde o astronauta é lançado." Neste caso, Shukor seguirá a hora do cosmódromo de Baikonour, no Cazaquistão. Se assim não fosse, as 80 orações diárias tornar-se-iam incompatíveis com a carga de trabalho que os astronautas enfrentam nas missões, repartindo-se por experiências científicas e pela manutenção e construção da ISS. "Sou muçulmano, mas a minha prioridade são as experiências", explicava Shukor, citado pelo jornal The Christian Science Monitor.
Também as posições corporais durante a oração devem adaptar-se às condições na ISS, refere o guia. O melhor é manter-se na vertical, mas podem até usar-se "as pálpebras como indicador da mudança de postura na oração". Ou ainda: "Imaginar a sequência da oração."
Meca já é uma questão mais complicada. A cidade está sempre a mover-se. Ou melhor, é Shukor quem, a mais de 300 quilómetros de altitude, não fica no mesmo sítio. Por isso, deve voltar-se para onde for possível: pode tentar-se uma projecção de Meca num ponto do espaço, mas também virar-se para a Terra ou para "qualquer lado".
Na alimentação, o porco e o álcool continuam proibidos. Mas, em caso de dúvida quanto à comida na ISS, o guia diz que "é permitido comê-la, para não se passar fome". E no Ramadão, em se jejua do nascer ao pôr do Sol, a referência é também a do fuso horário de onde se descolou.
Shukor ainda apanhou no espaço os últimos dias do Ramadão: "Como muçulmano, espero jejuar. O islão é compassivo. Se não poder jejuar no espaço, posso fazê-lo quando regressar." O astronauta assinalará o fim do Ramadão com a festa do Id al-Fitr, em que oferecerá uma refeição malaia aos colegas. Pena é que nenhum possa saborear grande coisa: no espaço, flui mais sangue do que o normal para a cabeça, pelo que se perde o paladar e o cheiro.

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